Comer é um ato
agrícola, disse um fazendeiro e economista americano, mas é também um ato
ecológico e um ato político, por Jaqueline B. Ramos*
(*) Jaqueline B. Ramos é jornalista e
editora do blog Ambiente-se. Este artigo foi publicado originalmente
na Agência
Envolverde
Quando falamos em sustentabilidade, pensamos em ações como não poluir,
preservar áreas naturais, reciclar lixo, economizar água, dar preferência às
fontes alternativas de energia etc. Mas raramente nos lembramos de relacionar
uma de nossas atividades mais básicas com impactos negativos no meio ambiente:
o ato de se alimentar. Nos primórdios da humanidade, a alimentação era baseada
em frutas, raízes, carnes de animais caçados e outras fontes que não
modificavam significativamente a natureza (pelo contrário, tudo fazia parte de
um ciclo natural). Com o advento da agricultura e da domesticação de animais,
há cerca de 12 mil anos, deu-se início à produção de alimentos.
A passagem do estado nômade para a fixação na terra marcou o início do
que chamamos “desenvolvimento da humanidade”. Com o passar dos séculos, o homem
foi criando novas formas de manejo do solo e as populações concentradas nas
cidades cresceram em ritmo progressivo, aumentando a demanda por alimentos. Até
que a chegada da Era Industrial, no final do século XVIII, intensificou a
aglomeração de pessoas no ambiente urbano, colocando fim, definitivamente, na
ligação direta que o ser humano tinha com a natureza para a obtenção de
alimentos. O resultado disso tudo é uma agricultura transformada em indústria
que passou a utilizar métodos artificiais, como fertilizantes e pesticidas
químicos, irrigação, manipulação genética e uso de hormônios em animais,
visando sempre o aumento da produção (e o lucro). Sem contar a dependência por
combustíveis fósseis, inclusive no transporte, por longas distâncias, dos
alimentos. É a cadeia alimentar industrial.
Se por um lado todo esse advento é considerado positivo, sendo
denominado como desenvolvimento ou modernidade, por outro é fato que o modelo
de alimentação industrializado é um forte candidato a causar sérios danos à
conservação do meio ambiente e também à saúde do homem. E por incrível que
pareça, a maior parte das pessoas atualmente não se dá conta disso. A origem
dos alimentos que consome simplesmente não faz parte da sua lista de
prioridades e a alimentação, o ato mais corriqueiro e básico do dia-a-dia, não
é visto sob a perspectiva ambiental ou da sustentabilidade.
“Comer é um ato agrícola, disse, numa frase famosa, Wendell Berry
(fazendeiro e economista americano). É também um ato ecológico, além de um ato
político. Ainda que muito tenha sido feito para obscurecer esse fato bastante
simples, o que e como comemos determinam, em grande parte, o que fazemos do
nosso mundo – e o que vai acontecer com ele. (…) Muita gente hoje parece
totalmente satisfeita comendo na extremidade da cadeia alimentar industrial sem
parar para pensar no assunto”, escreve o jornalista norte-americano Michael
Pollan, no seu livro “Dilema do Onívoro”. O jornalista passou cinco anos
investigando os bastidores da cadeia industrial alimentícia nos Estados Unidos,
reconstituindo o trajeto dos pratos mais consumidos e analisando o caminho
percorrido pelo alimento da origem à mesa.
Insumos químicos, agrotóxicos, erosão
do solo…
Como afirma o jornalista norte-americano, comer é um ato ecológico, o
que faz com que todo cidadão deva, idealmente, ficar atento à origem do
alimento que consome e analisar criticamente as técnicas empregadas no sistema
de produção. A qualidade e pureza dos alimentos, a sustentabilidade (social e
ecológica) dos métodos de produção e os problemas e desigualdades existentes na
sua distribuição são algumas das questões que devemos analisar em busca de uma
alimentação mais sustentável. Em tempo: é fato que se produz alimento em
quantidade suficiente para atender 100% da população mundial. Dificuldades de
acesso aos alimentos pela parcela mais carente da sociedade decorrem de
problemas sociais e econômicos, que por sua vez causam desequilíbrios na
distribuição.
Destacando algumas problemáticas da agricultura moderna para o meio
ambiente, uma primeira questão a ser analisada é o uso de insumos químicos.
Visando melhorar a produtividade e assegurar índices de produção, agricultores
costumam utilizar adubo e fertilizantes em suas plantações. O adubo mais
simples, natural e antigo é o esterco, que misturado a restos de vegetais e
fermentado de forma correta resulta no composto orgânico. Mas para ser
empregado em larga escala, o processo do fertilizante natural se tornou
inviável, economicamente falando. Para os empresários do agrobusiness, passou a
ser mais rentável o uso de agroquímicos (agrotóxicos e fertilizantes,
principalmente), inclusive para viabilizar o cultivo intensivo de uma única
cultura em uma área (as monoculturas, principais vilãs da qualidade do solo).
Os fertilizantes industriais contêm altas concentrações de nitrogênio,
fósforo, potássio e metais pesados. O nitrogênio, por exemplo, pode se acumular
no solo e ser transformado, por processos químicos, em nitrato. Além de ser um
composto cancerígeno, o nitrato pode contaminar o solo e também ser conduzido
aos lençóis subterrâneos, contaminando a água.
Outro problema gerado neste cenário é o desequilíbrio ecológico causado
pela própria prática da monocultura regada por fertilizantes químicos. Entre os
principais indicadores do desequilíbrio está o aparecimento de pragas, doenças
e ervas daninhas, que por sua vez são combatidas com agrotóxicos – inseticidas,
herbicidas e fungicidas. Ou seja, mais uma carga de substâncias químicas
tóxicas bombardeando o meio ambiente e a saúde de quem consome os alimentos,
pois estes acabam guardando resíduos dos agrotóxicos e têm alta probabilidade
de ficarem contaminados.
Como mais um remediador para o desequilíbrio ecológico conduzido pelo
próprio homem e visando, sempre, produtos finais comercialmente mais
lucrativos, entram em cena os alimentos transgênicos. Tratam-se de organismos
geneticamente modificados (OGMs) desenvolvidos em laboratório. Entre os
objetivos da manipulação genética está o de criar plantas mais resistentes a
pragas ou até mais resistentes a determinados agrotóxicos. Alimentos
transgênicos já são comercializados em vários países – entre eles o Brasil – e
ainda há muitas controvérsias em relação aos prós e contras da manipulação
genética para a saúde das pessoas e os impactos no meio ambiente. Enquanto os
debates e as pesquisas avançam, o importante é o consumidor se informar e
exigir a rotulagem dos alimentos transgênicos, de forma a ter condições de
decidir por consumir ou não um OGM.
Erosão e o impacto do bife
Uma questão importante decorrente da agricultura moderna é o fenômeno
chamado de “erosão genética”. A interferência do homem nas variedades
tradicionais com a manipulação de plantas e animais pode consistir em uma
ameaça para a diversidade genética, a principal responsável pela capacidade de
resistência, imunidade e sobrevivência das espécies.
Quando falamos em erosão é importante também lembrar do processo de
degradação do solo decorrente do uso de práticas agrícolas inadequadas e da
monocultura combinada com a mecanização, o corte de espécies nativas, a queima
da vegetação e a pecuária intensiva. Aliás, esta última rende um capítulo à
parte na discussão sobre alimentação sustentável, visto que o aumento no
consumo de carne e de seus derivados sobrepôs formas naturais (e mais éticas)
de criação dos animais, sem contar os problemas ambientais decorrentes da
pecuária.
Numa sociedade majoritariamente onívora, o “impacto do bife” passa por
questões de ordem moral – não é à toa a afirmação de que se os abatedouros
tivessem paredes de vidro, muita gente se tornaria vegetariana – e também de
ordem ambiental. Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas para
Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês) em 2006 alertou para o fato de que
“estoques de animais vivos” mantidos para alimentação são responsáveis por 18%
da emissão de todos os gases causadores do aquecimento global, porcentagem que
supera, por exemplo, as emissões causadas por todos os veículos automotores do
mundo somados.
O levantamento da FAO inclui as emissões de metano provocadas pelo
sistema digestivo dos animais, as emissões de CO2 geradas pelas queimadas para
a formação de pastos, a energia – quase sempre à base de queima de combustíveis
fósseis – usada na fabricação de insumos agrícolas, a energia gasta na produção
de ração e no bombeamento de água, a energia dos procedimentos de abate e
processamento das carcaças, o combustível usado no transporte de animais vivos
e de produtos processados de carne, entre outras questões relacionadas à
pecuária.
Seja analisando as técnicas industriais agrícolas ou o modelo intensivo
da pecuária, o fato é que a humanidade atingiu um limite perigoso na história
de uma relação insustentável com a natureza para obtenção de fontes de
alimentos. E nesse momento é importante que cada um, como consumidor, pare para
pensar mais criticamente e faça escolhas mais criteriosas e cuidadosas. Como
afirma o autor de “Dilema do Onívoro” em um dos trechos do livro, “a insensatez
demonstrada na busca por alimentos não é um fenômeno novo. No entanto, os novos
atos de insensatez que estamos cometendo na nossa cadeia alimentar industrial
hoje são de um tipo diferente.
Ao substituir a energia solar pelo combustível fóssil, ao criar milhões
de animais em rígidas condições de confinamento, ao alimentar esses animais com
comida para a qual sua evolução não os adaptou, e ao nos alimentarmos com
comidas que são muito mais insólitas do que imaginamos, estamos pondo em grave
risco nossa saúde e a saúde do mundo natural.”
O que o consumidor pode fazer em prol
de uma alimentação sustentável
# Informar-se sobre a importância da
agricultura sustentável e seus benefícios para a produção de alimentos,
inclusive em relação à saúde dos indivíduos e ambientes.
# Apoiar propostas de produção
regional, especialmente a familiar e a associada, com o objetivo de fortalecer
a segurança alimentar local e reduzir o desperdício de energia no transporte.
# Exigir que os produtores respeitem
as leis ambientais, assim como a legislação trabalhista, e que utilizem métodos
menos impactantes ao meio ambiente, adquirindo produtos elaborados com este
diferencial.
# Demandar que os vendedores de
alimentos estimulem a produção ecológica, inclusive solicitando a certificação
dos produtores por um organismo independente, para que possa ter certeza de que
os mesmos cumprem todas as exigências ambientais.
# Organizar-se em cooperativas de
consumo que estimulem a produção sustentável local e regional.
Fontes:
Cartilha Alimentos IDEC, livro
“Dilema do Onívoro” (editora Intrínseca) e Sociedade Vegeteriana Brasileira
(SVB); Cartilha Alimentos (IDEC); Informativo do Instituto Ecológico Aqualung
n. 78 -março/abril 2008.
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